Sente que fora abandonada por todos, e coisa alguma se harmonizava com o que entendia ser a sua alma. Permanecia assim: dias esquecidos e indiferentes, cavando fundo, as sombras mais frias; tombavam as primeiras folhas amareladas, nasciam as primeiras folhas verdes. Morte e recomeço. Nenhum laço a prendia a ternas lembranças, porque as não tinha, a não ser a emoção que tomava conta dela quando recordava os rapazes e as raparigas. Abandonada por todos, unida ao seu pessoal silêncio, era tocada por um sentimento de piedade, muito próximo do religioso. Parecia-lhe uma maldição tudo por que vivera, e certas zonas calcinadas do seu passado emergiam, agora, nítidas e dolorosas. Não quero acabar assim: encurralada e assustada. A casa vazia ressumava persistente odor a velhice. A velhice tem um odor húmido que se cola às coisas e, viscoso, parece escorrer pela pele. Tapadas, uma a uma, as janelas abertas pelos sonhos, pelas paixões, pelos desejos, pelas fraquezas e pelas intuições. A subida do desespero extremo, instantes sem conteúdo e, simultaneamente, portadores de secretas significações: o torpor de uma tarde suspensa e a invasão da alma pela morte. Varavam os dias, entretecidos uns nos outros. Sabe-se: gostamos das estações do ano consoante as estações da nossa vida. Apreciamos o Outono quando começamos a ficar velhos. A Primavera dói-nos porque nos dói os ossos, as carnes do peito e das pernas. Onde menos se supõe, lá está a dor. A felicidade não existe; há, apenas, instantes felizes. Também se diz que não se pode ter tudo. Mas porque razão não se pode ter tudo? Que nos impede de ter tudo? Quando fiquei só desorientei-me um pouco. Por vezes, era assaltada pelo receio de gritar no meio da noite. Pela primeira vez pressenti-me incapaz de dominar os meus medos e de remediar os meus impulsos. Vagueava pela casa, permanecia horas a reler jornais antigos, o silêncio era denso, o cheiro da solidão horroroso, os pensamentos afluíam e corriam à desfilada num tropel doentio. Assustava-me. Pensava na absoluta necessidade de coisas sem importância, mas tudo me conduzia às perplexidades do desalento. O poder das emoções começava a esclarecer as causas pelas quais eu fugira de tudo e ali me instalara. Todas as cidades, afinal, dispõem de um sítio onde as pessoas podem recolher-se, e onde o tempo pára quando rimos. Nunca quis muitas coisas. O que forma a minha e a tua vida foi a atracção mútua, embora nada nos aproximasse. Nem em dúvidas nem em certezas éramos semelhantes. Acreditavas em Deus; eu não só ignorava a Sua existência: desprezava-a. Hoje, admito que esse desprezo talvez contivesse algo de receio e de atracção. Como a morte: atrai-nos enquanto a repelimos. Detestavas os meus pequenos prazeres, fizeste-me amargar muitos deles com implacável zombaria: livros, músicas, filmes. Não merece a pena nomear as nossas divergências. Provínhamos do mesmo sítio, mas não pertencíamos aos mesmos sonhos.
Baptista-Bastos
Assinar:
Postar comentários (Atom)
1
A noite chega, vejo as estrelas, e me pergunto: - O que farei quando a luz se for? As portas que você abriu eu não consegu...
 
- 
Vou tecendo as impossibilidades de compreensão de tudo que me habita, pelo avesso do tecido. Alinhavo algumas lembranças às histórias qu...
- 
Quero ter você por um instante Em teu colo deslizar na direção do teu púlpito Entreabrir coxas para que sacies tua sede E bebas meu praze...
- 
Por que morremos ? Por que o onde é um lugar que não existe? Por que sem você meu mundo fica tão triste? Onde te encontrar? No quarto que ...
- 
Quero que me venhas Com calma e delicadeza Que me tomes em sombras Na penumbra tocando meu corpo Quero te tomar em beijos e carícias Sent...
- 
Quando os sentidos , Sem idéias preconcebidas, Apontam suas percepções Para longe das indefinições Que explicam o mundo, o que absorvo é a...
- 
morta dos que não tem dor. Como é estéril a certeza de quem vive sem amor... Você está vivo. Esse é o seu espetáculo. Só quem se mostra se e...
- 
A noite chega, vejo as estrelas, e me pergunto: - O que farei quando a luz se for? As portas que você abriu eu não consegu...
- 
“Do you Come from the deep sky or leave you the abyss, Ô Beauté? Your glance, infernal and divine, confusedly Pours the benefit and the crim...
- 
- Como está o céu lá fora? - Como estás? - Ainda te lembras? - Adivinhas-me? - Ainda sabes como me abraçar? O tempo vai passar, e passou a...
- 
Pior que perder um amor é reencontrar esse amor para voltar a perdê-lo. Essa dor se acumula em fardos estocados numa alma cansada. Enquant...
 
 
 
 
Nenhum comentário:
Postar um comentário